de Afonso Cruz, Caminho, 2016
Texto que retrata uma sociedade reduzida a números e processos mentais que não integram o sonho, a poesia.
Uma realidade que exclui a cultura, racionalizando-a e transformando-a em números secos e abstratos.
É com humor, que o Afonso Cruz nos leva desconstruir o mundo de certezas em que vivemos. É na literatura, na arte, na poesia, nestas coisas “inúteis” que refletimos e resistimos e nos permitimos (re) criar um mundo diferente.
“[…] O poeta aproximou-se do sofá e passou as mãos pelo tecido.
É um sofá, disse eu, mas ele nem sequer olhou para mim. Não que estivesse à espera, já que os estudos afirmam que os poetas vivem com pouca relação com a realidade e com quem os rodeia, não é que sejam parvos, é mais uma característica, assim como ser muito baixinho, digamos, abaixo de um metro e quarenta, ou ter manchas pretas como as vacas leiteiras que aparecem nas embalagens dos chocolates importados da Suíça ou da Bélgica.
A mãe alisou os lençóis, patrocinados por uma empresa de exportação de frutas e legumes, virou-se uns quarenta e cinco graus, baixou-se um pouco, bateu com a mão direita três vezes na cama enquanto sorria para o poeta. Aquele gesto significava: vá deite-se.
O poeta aproximou-se lentamente.
Os olhos brilhavam.
Não sei se eram lágrimas.
Sentou-se na cama.
Ficámos parados a ver.
O poeta descalçou-se.
A mãe torcia as mãos à frente do avental.
O poeta deitou-se de costas e levou as mãos ao interior do casaco.
Tirou um livro.
Por Mamon, o que é que ele vai fazer?, perguntou o meu irmão alarmado.
Vai ler, respondi eu. […]”.
Este “Vamos comprar um poeta”, torna a leitura um divertimento, só que muito sério.